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17.8.11

Sinapses emocionantes...

Sempre que ouço "Hey Jude", dos The Beatles, sou invadido por uma tristeza nostálgica, de um aniversário meu.

O estranho é que lembro somente de uma imagem: eu sentado no chão da sala de nossa casa em Itapiranga, pelos idos de 1993, talvez 92, ou 91....

Enfim, a lembrança é de um momento bem estranho, em que eu estava sozinho, brincando com carrinhos que ganhei de presente de meus pais, tios, amigos... não sei ao certo se havia alguém na cozinha, ou outra parte da casa, mas creio que sim, mas era (é, ainda, na lembrança) um sentimento de completa solidão, e a música, provavelmente tocando na rádio, era Hey jude.

Estranhas essas sinapses que nos trazem sentimentos dos mais variados, que nos tomam de assalto, sem mais nem menos, às vezes através de uma música, um cheiro...

O importante, creio, é que faz parte da vida, e acaba nos lembrando de quem fomos, e como viemos parar no que somos....

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Por Marco Vicente Dotto Köhler, 17/08/2011.

13.8.11

Quando Fomos Heróis!

A época do ano era convidativa para aventuras, sonhos e desafios. Fim de ano, família reunida... tios, tias e avós, todos naquela alegria de quase fim do ano, de quase novo ano... eram almoços com muita conversa da família de descendentes de italianos, melancia no meio da tarde, à sombra da frondosa árvore no quintal da casa dos meus avós.

Mas o que importava mesmo eram os primos que vinham passear uma vez por ano, quando curtíamos a valer nossa infância, jogando futebol, andando de bicicleta ou fazendo guerra de polícia contra bandido, na marcenaria do meu avô, que ficava junto a casa, onde pequenos cubos de madeira magicamente se transformavam em granadas, onde três pedaços de madeira, encaixados, quando eram do tipo que se faz paredes, ou pregadas, mais alguns pregos extras e simplesmente sofriam mutações e viravam revólveres, espingardas ou metralhadoras, com gatilho e mira feita com pequenos pregos.

A brincadeira consistia em nos dividirmos em duas equipes, uma de bandidos, outra de policiais, e um grupo deveria ficar dentro da marcenaria e protegê-la da invasão contrária. Era demais! Simplesmente incrível.

Primeiro Ato – O Heroísmo

Talvez essa vocação de policial nos fez tentar algo de heróico em uma daquelas tardes ensolaradas de dezembro, em Itapiranga, aquela cidade cercada por morros e à beira do Rio Uruguai, na divisa de Santa Catarina com o Rio Grande do Sul e com a Argentina, onde fazia um calor infernal.

Mas não nos importávamos. Embarcávamos em nossas naves movidas a pedais, com duas rodas aro 20 , que os mortais de visão estreita chamavam simplesmente de bicicleta!

Andávamos pela cidade, normalmente pela Avenida Uruguai, à beira Rio, quase sempre em grupos de em três, quatro, cinco...

Em um desses passeios, aconteceu algo inédito, que nos encheu de adrenalina: dois cidadãos largaram discretamente um saco na beira da calçada, em um lugar entre árvores e com capim relativamente alto, olharam em volta e seguiram adiante.

Nós, á distância, achamos curiosa a cena e a atitude dos dois, e paramos para conferir o que eles haviam largado lá.

Para nosso espanto, era um saco plástico contendo um pó branco, um tanto amarelado. Deixamos o saco ali, e seguimos adiante, fomos até o final da avenida, a uns dois quilômetros dali, e retornamos, pegamos aquela sacola e fomos para o quartel general: a marcenaria do meu avô, onde as indagações começaram de verdade.

O que seria? Cocaína? Heroína? Farinha de trigo? De quem era? Por que havia sido largada lá? Seria uma entrega mal planejada? Para quem seria? O que deveríamos fazer? Voltar lá e deixar onde estava? Não, isso não mais era possível, poderíamos ser descobertos, afinal, o local deveria ter sido previamente combinado com o suposto comprador... e ele poderia chegar lá no momento em que devolveríamos, o que seria nosso fim!

Segundo Ato – O Reconhecimento

Estávamos encrencados! Contaríamos a nossos pais? Certamente, não. Afinal, éramos os heróis, naquele dia.

Imaginávamos recebendo medalhas de honra por ter evitado que drogas chegassem às ruas, e quem sabe conseguiríamos desmantelar uma quadrilha de traficantes!

Depois de muito pensar, decidimos abrir o saco e tentar descobrir o que era. Abrimos com cuidado. O cheiro era forte, mas não nos era familiar. Farinha, com certeza não era. Como não conhecíamos muito além de farinha de trigo e de milho, maisena e polvilho, poderia mesmo ser realmente algo importante que encontramos lá.

Feita a análise, por nós, cinco garotos com experiência de vida entre 7 e 9 anos... de idade, decidimos ir à delegacia e entregar o produto do crime ao delegado, que, em nossa imaginação, nos parabenizaria pelo ato heróico, chamaria a rádio e o jornal local, o prefeito, o promotor de justiça, juiz e quem mais fosse para a cerimônia de honraria aos heróis mirins de Itapiranga.

Chegando lá, os cinco heróis, Darlan, Daniel e Kéu, meus primos, e Dengo, meu amigo e vizinho da minha avó, mais eu, (esse era o grupo, se minha memória não estiver me traindo, novamente) fomos logo perguntando pelo Delegado de Polícia, com a euforia característica de um herói em seu primeiro ato.

Questionados a respeito do motivo de estarmos ali, erguemos o tal saco de pó desconhecido, em uma atitude quase de quem levanta um troféu. Um troféu pequeno, talvez meio quilo ou um pouco mais.

O policial que nos atendeu perguntou o que era aquilo, e contamos a história a ele, um interrompendo o outro, com a felicidade de quem está ajudando a humanidade a salvar-se da maldade.

Um tanto incrédulo (para não dizer completamente), o policial chamou o Delegado, que nos questionou sobre os detalhes de como conseguimos aquele saco com aquele pó, e sobre como eram os dois supostos traficantes que teriam largado a “encomenda” no “ponto de entrega”.

Nos acalmou, dizendo que poderíamos ficar tranquilos, que apesar de ter perguntado e anotado nossos nomes e os nomes dos nossos pais, não estávamos correndo qualquer risco. Seria uma investigação sigilosa! Essa palavra acendeu novamente nossa honra de heróis!

Saímos dali com a sensação de dever cumprido.

Terceiro Ato – A Descoberta

À noite, quando minha mãe, chegou em casa, já sabia do ocorrido. O Delegado avisou nossos pais, o que não era nada bom, pois levei um sermão interminável sobre os riscos de se fazer o que fizemos. Ouvi, impassível, ainda orgulhoso do que tínhamos feito, argumentando que poderíamos estar ajudando a polícia a prender bandidos, o que era compreendido por ela em termos de “se meter em encrencas”.

No dia seguinte, ficamos proibidos de sair de bicicleta. Era nossa recompensa pelo ato heróico. Ficamos em casa, imaginando ainda os frutos que poderíamos colher da atitude mal compreendida, afinal, todo herói é posto em dúvida em algum momento.

Dias depois, minha mãe deu a notícia que tanto aguardávamos: o que tinha naquele saco?

- era enxofre, meu filho! - disse ela, com um ar de tranquilidade que até pouco tempo não compreendia.

Então, foi isso. Salvamos a humanidade do terrível mal destruidor de um saco plástico com enxofre!

Mas, apesar do revés, ninguém pode tirar de nós aquele sentimento de dever cumprido, nem duvidar de que, naquele dia, fomos heróis!

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Por Marco Vicente Dotto Köhler.