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30.11.06

Vício, compulsão, ou nada disso?

Acordou naquele dia sentindo-se estranho, mas com a certeza de que havia dado um passo importante em seu autoconhecimento, e que lhe permitiria tornar-se um ser humano melhor.
Mas, afinal, o que foi que aconteceu? Admitira para si o que já para alguns de seus amigos não era novidade: era ele viciado em escrever. Escrevia de tudo um pouco, desde um diário, o qual não era necessariamente “diário”, contos, crônicas, poesias... Enfim, escrevia o que tinha vontade de escrever.
Seu estado era tal que chegara ao ponto de acordar no meio da noite, de sobressalto, ligar a sua inestimável luz de leitura, à cabeceira da cama, e abrir seu caderno em busca de alguma página em branco, para escrever, não importa o que fosse.
Queria mesmo era ver sua letra rabiscada no papel, o que muitas vezes era produtivamente bom, pois, não raro, elaborava bons textos, e em outras servia apenas para saciar sua vontade irreprimível de escrever.
Mas, ultimamente, sua compulsão viciosa pela escrita estava causando-lhe preocupações, pois já estava começando a “pensar escrito”, ou seja: o que pensava ou dizia, ele “via” como se estivesse escrevendo-as no papel (ou no computador, ou na máquina de escrever...), visualizando em sua mente a pontuação, parágrafos, grafia, regras gramaticais, etc.
Estado realmente preocupante este em que se encontrava.

Outro grande passo: o segundo.

Após admitir tal vício, sua decisão foi a de participar de um grupo de, como ele, viciados em escrever, o “Anônimos Viciados em Escrever”, mais conhecidos pela sigla “AVE”.
Era chegado o grande encontro: o primeiro dia, a primeira reunião no AVE.
Chegou ao local das reuniões. Entrou na sala. Sentou-se. Foi saudado com um caloroso “boa noite, seja bem vindo”, de todos os seus novos companheiros, seguido de uma salva de palmas.
Uma das presentes, que estava à frente, em pé, anunciou o novo AVE – modo como chamavam uns aos outros os integrantes do grupo de apoio – e discursou sobre a importância do grupo na recuperação dos viciados em escrever; dos resultados do tratamento, que buscava ajudar as pessoas viciadas nesse terrível mal: escrever.
Ao final de sua apresentação de boas vindas a mulher convidou o novo participante – o novo AVE – a dar o primeiro passo rumo à libertação definitiva do vício de escrever, e disse-lhe: “escreva alguma coisa”.
Sem entender nada, mas feliz por poder escrever algo e ter a chance de poder fazer cessar os primeiros sintomas da abstinência da escrita, pegou o papel e a caneta que lhe foram alcançados e escreveu, deliciosamente, com todo o prazer que isso lhe proporcionava, um texto intitulado: “Vício, compulsão, ou nada disso?”

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Por Marco Vicente Dotto Köhler.

24.11.06

Em outro telefonema...

ligo para a empresa "sei-lá-o-quê-logística-ltda" e pergunto:
"alô, gostaria de falar com o responsável pelo setor de logística"
"pois não, só um minuto"
"tãlãã lã lã laã lã lã lã, talã lã tã..."
"responsável pela logística, em que posso lhe ser útil?"
"oi, é que sou estudante universitário e preciso urgentementemente de seus serviços"
"ah! um estudante, o futuro de nosso país"
"é,.... dizem" (já um tanto constrangido)
"mas, me diga, qual o seu problema?"
"bom, quero fazer uma tabela de faltas às aulas, de forma que eu falte uma matéria por semana, de forma alternada em todas elas, já com a previsão de limite de faltas e dias de prova, aos quais não poderei faltar, sendo que são vinte semanas e posso faltar cinco dias por matéria..."
"é brincadeira, não, senhor estudante?"
"não, estou falando sério"
"e eu pensando que estava falando com o futuro do país"
"mas..."
"que insulto! tchau!"

silêncio, fone no gancho... túuu túuu túuu túuu túuu"

14.11.06

Enquanto isso...

ele atende ao telefone:

- Alô?
- Alô, aqui sou eu, e aí, é tu?
- sim...
- porque tu me ligou?
- Não, eu não liguei, tu me ligou.
- Eu?
- Sim...
- tu não é tu?
- sim..
- Então, se tu é tu e foi tu quem ligou...
- Não, não fui eu...
- E quem foi então?
- Tu!
- Então!! Se tu é tu e foi tu quem ligou!
- Quem está falando?
- Eu, e aí?!
- eu!
- “Eu”? como assim "eu"? Não mesmo! eu sou Eu, tu é Tu!
- sim, mas foi tu quem ligou!
- viu só? Tu mesmo está dizendo que foi Tu quem ligou!
- não, não estou dizendo!
- Hipócrita! Mentiroso! Tchau!
tú tú tú tú tú tú tú tú!

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Por Marco Vicente Dotto Köhler

8.11.06

Até logo, nunca mais.

Depois de muitas trilhas trilhadas, o tesouro adormecido
repousa em uma fria caverna, em que adormecem
sonhos eternos, e distantes, dispersos em fagulhas intermináveis,
pairando sobre andarilhos rumando sem rumo algum,
norteados por lembranças nebulosas, constantes,
intensas, cravadas até os ossos na carne da alma trôpega em
luta presente com o amanhã incerto da aurora fria e vazia que
arma-se no horizonte, nunca antes tão distante ao toque impreciso
das esperanças precisas de quem batalha a cada passo e daria
até a última gota de sangue por apenas
um momento a mais contigo.


______
Por Marco Vicente Dotto Köhler

1.11.06

À vontade, liberdade!

Um rapaz muito inteligente, porém muito introvertido, começou a observar melhor o mundo, tanto o que via pela televisão e lia nos livros, jornais e revistas, quanto o mundo que o cercava: pessoas na rua, em suas casas, no que era observável da rua ou em visitas a amigos e a parentes, colegas de trabalho, as pessoas nos mercados e em outros estabelecimentos.

Enquanto observava tais situações e pessoas, prestava atenção ao que se passava consigo e a relação entre ambos: em que situações ficava nervoso, calmo, aparentemente calmo; quando seu coração disparava e quando quase parava; o que o fazia suar ou sentir calafrios; e quando podia ser ele mesmo, sem disfarces, ficar à vontade, sem se policiar.

Ao ficar mais perspicaz em tal “tarefa”, se deu conta de um sinal, ou sintoma que indicava com quais pessoas ele podia ou não ser ele mesmo, sem máscaras, sem “photoshop”: peidar, liberar os gases resultantes da digestão, algo que todos fazemos, mas, mesmo assim, provoca constrangimentos, era, para ele algo que não provocava tal constrangimento.

Pois bem. Após essa explanação / familiarização com a palavra, vamos ao cerne da questão: o sinal, sintoma que revela em quais situações ou com quais pessoas ele se permitia ser ele mesmo, era o “peidar”, mas não somente peidar. Não! É mais complexo. É um conjunto formado por “peidar”, somado a “não constrangimento” e a “não se desculpar”, em suma, sem “peso” na consciência.

Após tal descoberta, passou a peidar na presença de seus pais, da sua namorada, dos sogros, dos colegas de trabalho e amigos.
Peidava e sentia-se feliz por estar na presença de pessoas tão amadas que ele se permitia tal ato, constrangedor na visão preconceituosa da sociedade.

Peidava e sorria. Não um sorriso sacana, de quem peida e se satisfaz ao fazer outros se irritarem, ah não! Sorria um sorriso singelo, quase de ternura, e, em muitas ocasiões, após consumar tal ato “libertador”, dizia: “FUI EU!” e completava: “e o fiz porque amo vocês!”, ou então: “fui eu, e o fiz por sentir-me tão bem aqui!”. Esses são apenas dois dos muitos comentários dessa natureza.

Enquanto ele fazia seus comentários, satisfeito, algumas pessoas, ou por não o compreenderem, ou por não estarem acostumadas àquilo, reclamavam. E ele, sempre sorridente e calmo, replicava: “por que você está tão irritada?” “é tão simples!”. Mas de nada adiantava.

Um certo dia entrou em uma sala, fechou a porta atrás de si, e peidou. Mas peidou, “glamourosmente”, um peido magistral, não muito estrondoso, não muito demorado, um tanto cadenciado, pode-se dizer. Enfim, uma verdadeira obra de arte, uma declaração de carinho – claro que essa é a visão dele.
Ao finalizar sua obra, olhou para frente, confiante, sorrindo aquele sorriso, típico dessas ocasiões especiais, e, com um brilho sereno e denso no olhar e de braços abertos, como que virtualmente abraçando seu homenageado, disse: “estou tão feliz, sinto-me tão bem, tão à vontade, que vim até aqui para peidar o melhor peido que já peidei; minha obra-prima. Tudo em homenagem ao senhor, que sempre foi tão justo comigo, sempre reconheceu meus esforços: Sr. Presidente da empresa, muito obrigado pela promoção. Desculpe-me por tal lisonja, não quero parecer puxa-saco, mas o mínimo que eu podia fazer era isso: vir aqui e peidar, pois agora me sinto realmente parte dessa empresa, sinto-me à vontade”.

Ao terminar seu discurso, virou-se, abriu a porta e saiu da sala, seguindo pelo corredor, peidando para cada colega que encontrava, satisfeito.

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Por: Marco Vicente Dotto Köhler – 22 de julho de 2005.