Minha esposa tem insônia. Eu, estando quieto e escuro, durmo bem. Ela, não. Demora para dormir. Demora para querer dormir, eu acho. Não é tanto falta de sono, pelo que observo, e sim falta de vontade de dormir, de fechar ir para a cama, fechar os olhos e desligar as luzes daquele dia, esperando pelo próximo. Parece até que anseia por algum acontecimento ainda naquele final de dia, mesmo que já iniciado o dia seguinte, no relógio, pelo menos.
Apesar de já estar acostumado a isso, e a muitas vezes no meio da noite acordar e ela estar acordada, lendo ou vendo TV, no mudo, para não atrapalhar meu sono, somente para ter alguma coisa com que se distrair – ao invés de tentar dormir –, noites atrás aconteceu algo muito estranho, beirando a bizarrice.
A coisa foi estranha a tal ponto que até eu, bom de sono, não consegui mais dormir, tamanha foi a crise de riso que sofri.
Locomotiva?
Como quando estamos sonhando com algo por interferência de algum estímulo externo, normalmente algum barulho que acaba fazendo parte do sonho, nessa noite meu sonho foi acometido por barulhos um abafados, mas constantes e bem cadenciados, como um pistão acolchoado batendo em algo carpetado ou emborrachado, somado a uma espécie de válvula de escape de máquinas a vapor, mas sem estridente, só o vazar de vapor, com pouca pressão.
No meu sonho isso foi transformado em uma locomotiva, que, com o tempo, acabou me tirando do sono e me trazendo à tona, à cama, ao despertar.
Mas... que som era aquele?
Surpresa mesmo foi continuar ouvindo aquele som. Ao vascular a cama e perceber estar só, virei para o lado de onde vinha o barulho e percebi, surpreso, que a onomatopéia a locomotiva era minha esposa, ao lado da cama, com pés de pistão e escape de respiração.
Não pude conter o riso ao vê-la ali, com uma concentração perturbadora, fazendo polichinelos aos pés da cama, enquanto olhava para a televisão sem som, com um pássaro de cabeça vermelha e olhos loucos fazendo atrocidades com um funcionário das empresas de telefone, que tinha os postes devorados pela árvore.
O que foi? Nunca viu alguém fazer isso antes?
Mas devorada mesmo foi a concentração dela pelo meu riso, que fez com que parasse de polichineliar e começasse a questionar:
- o que foi? Nunca viu alguém fazer polichinelos antes?
- já, claro que sim – respondi, em meio a gargalhadas.
- então, ta rindo de quê – o “de quê” foi dito com perigosa ênfase de mulher irritada, com as mãos na cintura e olhar amedrontador.
- é que... é que...
- para de rir!
- ai.. é que... – não tinha como responder àquela pergunta, era engraçado demais para ser inteligível e colocado em palavras.
- então! Não vai me dizer onde está a graça? Ta rindo de quê?
- polichinelos! Isso é demais! Minha nossa!
- vai dormir, vai! E para de me incomodar!
- sim, vou tentar, mas... polichinelos?
- é, e daí?
- daí, que... ah... para de perguntar, que ta doendo minha barriga, de tanto rir... ah! Polichinelos! Rá rá!
- ai que saco! Não posso nem fazer polichinelos que já sou motivo de chacota e deboche!
- chacota? Deboche? Rá rá! Polichinelos!
- ai! Vou dormir! Deu!
- polichinelos...
Por fim, ela dormiu, e eu não consegui mais, pois a imagem dela fazendo polichinelos (po-li-chi-ne-los!!) foi demais para um mortal como eu conseguir voltar a dormir...
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Por Marco Vicente Dotto Köhler, julho de 2012